Astrocytes

Astrocytes: Powering Memory
Rúben Maia

Um dos mais fascinantes aspectos do comportamento animal é a capacidade de ajustar esse comportamento através da memorização e aprendizagem, processos que atingem a sua máxima força no Homem. 
Tradicionalmente, considera-se que a memória é um fenómeno levado a cabo pelos neurónios através da intensidade e do formato das sinapses que partilham. No entanto, têm surgido fortes indícios de que os astrócitos – as células da glia em formato de estrela presentes no sistema nervoso central (SNC) – possam estar profundamente envolvidos na iniciação e consolidação de memórias. 


Que tipos de memória existem e quais as suas bases anatómicas, celulares e moleculares? 

Antes de explorar o potencial papel dos astrócitos na memória, é pertinente perceber como evoluiram os conceitos biológicos e celulares inerentes à criação e manutenção das memórias. 

O trabalho de Brenda Milner (1969), uma neurocientista canadiana, foi essencial para concluir que certas formas de memória são armazenadas no hipocampo e no lobo temporal medial. Durante 40 anos, Milner acompanhou a vida de Henry Molaison (conhecido por HM) que sofria de epilepsia severa e intratável cujo último recurso de tratameto fora a remoção das porções mediais do lobo temporal, incluindo os hipocampos. Apesar de resolvida a epilepsia, HM deixou de conseguir reter, por mais do que alguns minutos, informação acerca de lugares, objectos ou pessoas, incluindo a própria Brenda Milner. No entanto, as memórias antigas referentes à sua infância ou ao seu trabalho estavam preservadas, sugerindo que o hipocampo participa na fase inicial da memorização mas são outras áreas corticais que armazenam a memória a longo prazo. Outra importante conclusão foi retirada pelo facto de HM ter mantido a capacidade de aprender tarefas motoras como trabalhar com o computador, levando a crer que nem todos os tipos de memória necessitam do hipocampo

Torna-se agora mais fácil perceber que existem no cérebro dois grandes sistemas de memória: a memória não-declarativa (procedimental, implícita) e a memória declarativa (explícita). Em termos temporais, podemos classificar as memórias em 2 tipos: 

- Memória a curto prazo: duram de segundos a poucos minutos; 
- Memória a longo prazo: podem durar dias, semanas, anos ou a vida toda. 

A memória não declarativa está relacionada com as percepções e memórias motoras que envolvem numerosos sistemas como o cerebelo, o estriado, a amigdala e até simples reflexos. Estudos iniciais sobre memória a curto prazo em animais com um baixo número de neurónios como a Aplysia foram fundamentais para perceber que aquela pode ser alterada através de habituação ou sensitização, levando a modificações na força da sinapse. (fig 1) 
A habituação ocorre quando um estímulo pouco importante para o organismo é repetido até que a libertação sináptica do neurotransmissor é inibida – diminuição da força da sinapse

Fig 1: Sistema de memória descoberto na Aplysia. Fonte: Guyton, Hall. Textbook of Medical Physiology

A sensitização tem lugar quando é adicionado um estímulo importante (i.e. dor) levando à activação de neurónios modulatórios que aumentam a libertação sináptica de neurotransmissores através da activação do cAMP (adenosina monofosfato cíclico) e consequente aumento do PKA (proteína cinase A) – aumento da força da sinapse
Um importante estudo de Creg Baley e Mary Chen (1988) concluiu que, no mesmo reflexo da Aplysia, sensitização ou habituação prolongadas levam à formação de memória a longo prazo caracterizada por profundas alterações estruturais pré e pós-sinápticas que incluem respectivamente aumento ou diminuição do número de sinapses envolvidas no reflexo. 
Este tipo de experiências permite-nos observar três aspectos importantes: 

  1. As sinapses entre neurónios não são imutáveis mas sim modificáveis através da aprendizagem e essas modificações microanatómicas são a base elementar do armazenamento de memórias 
  2. A memória não-declarativa relacionada com reflexos simples é independente de neurónios especializados em armazenar e não processar informação. Nestes casos, a memória é armazenada na arquitectura neuronal do reflexo. 
  3. O aumento da força da sinapse ocorre via cAMP com produção de PKA. 

A memória declarativa tem que ver com factos e eventos – pessoas, lugares e objectos – e necessita do lobo temporal medial e do hipocampo para ser processada. Sabe-se que o hipocampo é importante na memória espacial e na transformação de memória a curto prazo em memória a longo prazo. Um fenómeno semelhante ao de sensitização envolvendo a estimulação a altas frequências – potenciação a longo prazo (long-term potentiation, LTP) – foi descoberto no hipocampo e é considerado hoje um dos processos inerentes e necessários à aprendizagem e à construção de memórias. Na década de 60, Jeffrey Watkins descobriu que o glutamato é o maior neurotransmissor excitatório do cérebro e que este actua em receptores NMDA (NMDAR). Duas décadas depois, Richard Morris relaciona a LTP com os NMDAR demonstrando que estes receptores têm de estar activados para que haja aprendizagem espacial no rato. Bloqueando farmacologicamente os NMDAR, o LTP é igualmente bloqueado impedindo os ratos de formar memória espacial. 


Como se forma a memória a longo prazo a partir da memória a curto prazo? 

A primeira pista, no âmbito da memória não-declarativa, surgiu quando se observou que a formação de memória a longo prazo requer a síntese de novas proteínas. Estudos na Aplysia e Drosophila confirmaram que, após treino prolongado, o PKA desloca-se da zona da sinapse para o núcleo do neurónio onde activa o factor de transcrição CREB-1 (cAMP responsive element binding protein 1) que por sua vez potencia a síntese de novas proteínas com a criação de novas sinapses. Estudos realizados no final da década de 90, demonstraram que existem também factores que inibem a sinaptogénese (i.e. genes supressores da memória e CREB-2). 

No que concerne à memória declarativa, sabe-se que também a LTP induzida no hipocampo apresenta resultados diferentes na durabilidade da memória consoante o estímulo é breve ou prolongado. Enquanto uma sucessão de estímulos produz uma LTP durante 1-3h sem síntese proteica, quatro ou mais sequências de estímulos induzem uma LTP com duração superior a 24h com síntese de novas proteínas. 


Quais as semelhanças moleculares entre memória declarativa e não-declarativa? 

Estamos agora em condições de sintetizar quatro importantes observações: 
  1. Ambos os tipos de memória possuem dois estadios – um que não requer síntese de novas proteínas e outro que sim. 
  2. Em ambas, a memória a curto prazo envolve modificação de proteínas pre-existentes e aumento da força das sinapses. 
  3. Em ambas, a memória a longo prazo implica síntese de novas proteínas e de novas sinapses. 
  4. A memória a longo prazo é sempre acompanhada de alterações morfológicas das sinapses. 

Qual o papel dos astrócitos na fisiologia cerebral? 

Tradicionalmente, considera-se que a memória é uma função superior cujos principais agentes são os neurónios e as sinapses que formam entre si. De facto, já percebemos que a formação de memória a curto prazo depende do aumento da força das sinapses e que a consolidação de memórias a longo prazo está dependente de alterações plásticas e arquitectónicas da rede sináptica num determinado grupo de neurónios. No entanto, vários estudos recentes apontam para um outro agente celular com intervenção directa na formação de memórias declarativas – o astrócito (fig 2). Talvez por não conduzirem a informação da mesma forma que os neurónios e por não apresentarem excitabilidade, os astrócitos foram durante muitos anos subvalorizados quanto ao seu potencial papel em fenómenos como a aprendizagem ou memória. 

Fig 2: Imagem confocal por laser-scanning de um astrócito protoplasmático na substância cinzenta do giro dentado do hipotálamo após injecção de corante fluorescente (AlexaFluor 568). Fonte: Ross MH, Pawlina W. Histology: A Text and Atlas.

Os astrócitos desempenham um papel fundamental na função cerebral interagindo com os neurónios ou outros astrócitos, no entanto, a sua participação na memória não foi ainda amplamente reconhecida. Tratam-se de células da neuroglia central que providenciam suporte físico e metabólico aos neurónios. As suas funções conhecidas incluem: 
  • Contribuição na manutenção da barreira hematoencefálica através da emissão de pés perivasculares que cobrem o endotélio dos capilares sanguíneos; 
  • Modulação da actividade sináptica através do aprisionamento e/ou remoção de neurotransmissores da fenda sináptica e através da regulação da concentração de K+ no compartimento extracelular; 
  • Formação da glia limitante pela emissão de prolongamentos para a lâmina basal da pia-mater. 
  • Armazenamento de glicogénio e capacidade de glicogenólise que leva à formação de substractos importantes para o metabolismo cerebral e para a regulação da actividade neuronal. 

Estas fascinantes células em forma de estrela são as maiores e mais numerosas células gliais e possuem duas características que merecem a nossa atenção: 
  • Os astrócitos comunicam intimamente entre si via junções comunicantes (gap junctions) formando um sincício por onde a informação intercelular pode ser transmitida; 
  • Nos seus filamentos intermédios, expressam glial fibrillary acid protein (GFAP) – um marcador específico para astrócitos. (fig 3) 

Fig 3: Fotomicrografia mostrando astrócitos fibrosos na substância branca cerebral aqui evidenciados por imunohistoquímica com anticorpos contra GFAP. Fonte: Ross MH, Pawlina W. Histology: A Text and Atlas.

De que forma os astrócitos estão envolvidos na formação da memória? 

A neurociência trabalha neste momento para conseguir responder a esta questão. Foram seleccionados dois artigos que sugerem pistas interessantes e inovadoras acerca da relação entre a actividade astrocítica e a formação de memória a longo prazo. Os aspectos essenciais de cada artigo serão abordados de seguida. 

  • Long-term potentiation depends on release of D-Serine from astrocytes
Neste estudo, Hennenberg e colegas usaram células do hipocampo de ratos para demonstrar que o aumento de Ca2+ intracelular no astrócito controla a indução de LTP nas sinapses vizinhas. Os autores induziram LTP em sinapses usando estimulação de alta frequência (EAF). Com uma pipeta, eles injectaram em astrócitos individualizados uma solução-controlo ou uma solução-tampão que previne o aumento da concentração citosólica de Ca2+ e depois aplicaram a EAF. (fig 4) Estes são alguns dos resultados observados: 

Fig 4: Representação esquemática simplificada de uma das experiências conduzidas pela equipa de investigadores. Em cima, injecção de solução-controlo em astrócito com aumento do Ca2+ intracelular e libertação de D-Serina na fenda sináptica e indução de LTP. Em baixo, injecção de solução-tampão para o cálcio resultando na inibição da libertação de D-Serina e da LTP. Fonte: Santello M, Volterra A. Astrocytes as aide-mémoires. (2011) Nature.

  • O nível de Ca2+ aumentou apenas nos astrócitos que não receberam a solução-tampão, levando à libertação de D-serina – um co-agonista dos NMDAR que promove a LTP quando o glutamato é libertado pelo terminal pré-sináptico; 
  • Na presença da solução-tampão, o LTP é inibido mas apenas nos territórios controlados pelos astrócitos sem capacidade de aumento do Ca2+. 
  • Em territórios controlados por astrócitos tamponados, a LTP pode ser recuperada com a adição de D-serina, o que sugere este co-agonista dos NMDAR é necessariamente libertado pelos astrócitos 
Estes resultados indicam que a LTP, estimulada pela activação dos NMDAR pelo glutamato está dependente da libertação de D-serina pelos astrócitos. 

  • Astrocyte-Neuron Lactate Transport is Required for Long-Term Memory Formation
Neste estudo publicado na revista Cell em Março de 2011, Suzuki e colegas abordaram in vivo o papel dos astrócitos na formação de memória a longo prazo. Em ratos, a equipa de investigadores aplicou o teste da evitação inibitória e observou as alterações bioquímicas e de aprendizagem e memória que apresentavam à medida que se influenciava a relação metabólica entre astrócitos e neurónios do hipocampo. (fig 5) Seguem-se os resultados mais importantes:

Fig 5: Representação esquemática simplificada do estudo e alguns resultados. A – Os ratos são sujeitos a uma tarefa de aprendizagem. B – Os astrócitos são induzidos a realizar glicogenólise através de um mecanismo desconhecido (1). O lactato proveniente da degradação do glicogénio é transportado por MCT1/4 para o espaço extracelular em locais desconhecidos da membrana plasmática (2). O lactato é transportado para o citosol do neurónio pelos MCT2 desconhecendo-se a forma como actuam nas cascatas de sinalização (3). O lactato é necessário para a fosforilação do CREB e da Cofilina e para a expressão do gene Arc levando à formação de memória a longo prazo, alterações sinápticas estruturais e formação de novas sinapses. Fonte: Bezzi P, Volterra A. Astrocytes: Powering Memory. (2011) Cell.

  • Imediatamente após a realização de uma tarefa de aprendizagem ocorre glicogenólise (que acontece nos astrócitos e não nos neurónios) e aumenta a concentração de lactato no espaço extracelular. 
  • A inibição farmacológica da glicogenólise impede o aumento do lactato extracelular, demonstrando que este é produzido através do catabolismo do glicogénio. 
  • A inibição farmacológica da glicogenólise na fase inicial da formação da memória impede a retenção da tarefa aprendida sugerindo que este evento metabólico é fundamental para a conversão da memória instável a curto prazo para memória a longo prazo. 
  • Com a glicogenólise inibida, a administração de lactato exógeno é capaz de recrutar a capacidade de formação de memória 
  • O transporte de lactato entre células depende dos transportadores de monocarboxilato (MCT2 nos neurónios; MCT4 nos astrócitos) pelo que os seu bloqueio impede a consolidação da memória. 
  • O efeito do bloqueio selectivo dos MCT4 (astrócitos) é revertido com a adição de lactato exógeno. Tal não acontece quando são bloqueados apenas os MCT2 (neurónios). Este resultado indica que o lactato, essencial à formação de memória, é transportado dos astrócitos para os neurónios. 

Da análise destes dois estudos, podemos concluir que há uma forte relação entre a actividade dos astrócitos e a consolidação da memória, especificamente mediante a libertação de D-serina e lactato em direcção aos neurónios e sinapses que se encontram activos em resposta a uma actividade de aprendizagem. Estes dados contrariam a ideia generalizada de que os processos cognitivos superiores estariam na dependência exclusiva da actividade neuronal e que a neuroglia se limitaria a uma função de suporte físico e metabólico dos neurónios. 
A neuroglia central adquire assim uma importância que não deve ser ignorada no estudo dos fenómenos de aprendizagem e memória. 



Bibliografia 


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