Histologia virtual


Histologia virtual de artérias coronárias
João Rocha



O relatório de 2011 da Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que as doenças crónicas, como as doenças cardiovasculares, a diabetes, a obesidade, o cancro e as doenças respiratórias, representam cerca de 63% do total de 57 milhões de mortes por ano. Em Portugal, as doenças cardiovasculares representam cerca de 40% dos óbitos. Para além de recomendações para adopção de estilos de vida saudáveis de forma a reduzir o risco de ocorrência de doenças cardiovasculares, o desenvolvimento e evolução dos meios de diagnóstico, nomeadamente imagiológicos, têm vindo a ajudar não só na decisão da melhor terapêutica a adoptar, mas também na crescente atitude preventiva da doença. A caracterização morfológica de lesões arteriais por diferentes meios imagiológicos tem sofrido grandes evoluções, existindo nas mais recentes técnicas uma potencial capacidade de histologia virtual.

De uma forma geral, o sistema cardiovascular é constituído por uma bomba (coração) com capacidade de ejecção de sangue e por um sistema de canais (vasos sanguíneos) que permitem que o sangue seja conduzido a todas as partes do corpo e que regresse para ser novamente bombeado. Existem dois tipos de circulação: a pulmonar, em que o sangue é enviado do coração aos pulmões onde é oxigenado, regressando novamente ao coração; a sistémica, em que o sangue oxigenado é enviado a todas as restantes partes do corpo regressando novamente ao coração. Os vasos sanguíneos que enviam sangue do coração são artérias, os que fazem regressar sangue ao coração são veias. As artérias que fornecem sangue oxigenado (arterial) ao coração são as artérias coronárias. 

As paredes das artérias e veias são constituídas por três camadas: 
  • túnica intima, a camada mais interna do vaso, é constituída por três componentes: endotélio, uma camada de células epiteliais pavimentosas; lâmina basal, células endoteliais (fina camada composta principalmente por colagénio, proteoglicanos e glicoproteínas); camada subendotelial, constituída por tecido conjuntivo, contém uma camada em folha de material elástico fenestrado chamada membrana elástica interna, permitindo que as substâncias rapidamente se difundam através da camada e atinjam as células profundas dentro da parede do vaso.
  • túnica média, constituída essencialmente por células musculares lisas dispostas circularmente. A quantidade de sangue que circula através de um vaso pode ser regulada pela contracção (vasoconstrição com diminuição de calibre do vaso) ou relaxamento (vasodilatação com aumento do calibre do vaso) do músculo liso da túnica média. Nas artérias esta camada é particularmente espessa, e estende-se desde a membrana elástica interna à membrana elástica externa. A membrana elástica externa é uma camada de elastina que separa a túnica média da adventícia. 
  • túnica adventícia, camada mais externa constituída por tecido conjuntivo que varia de denso, próximo da túnica média, a laxo, que se continua com o tecido conjuntivo que envolve o vaso sanguíneo. Em grandes artérias e veias, contém um sistema de vasos que fornece sangue para a própria parede do vaso, denominado vasa vasorum, assim como uma rede de nervos denominada nervi vascularis, que controla a contracção do tecido muscular liso da parede dos vasos. 


Histologicamente, os vários tipos de artérias e veias são distinguidos pela espessura da parede vascular e pelas diferentes composições nas diferentes camadas. A tabela seguinte sumariza os principais tipos de vasos sanguíneos: 

Tabela 1. Diferença de calibre e composição das diferentes camadas da parede dos diferentes vasos sanguíneos. Fonte: Ross, M. H., Pawlina, W., Histology: A text and atlas. Clique aqui para aumentar.


Em várias localizações do corpo existem artérias e veias com estrutura atípica, de que são exemplo as artérias coronárias. As artérias coronárias são consideradas artérias musculares de médio calibre, tendo origem na porção ascendente da aorta seguindo pela superfície do coração no epicárdio rodeadas por tecido adiposo. As paredes das coronárias são normalmente mais espessas quando comparadas a artérias semelhantes dos membros superior e inferior, devido a uma maior quantidade de camadas circulares de tecido muscular liso na túnica média. Em preparações de Hematoxilina Eosina, a camada subendotelial da túnica íntima é imperceptível em jovens, e é progressivamente mais espessa com o envelhecimento, pelo aumento de tecido muscular liso e tecido fibroelástico. A membrana elástica interna está bem desenvolvida, embora possa estar fragmentada, duplicada ou localmente perdida em indivíduos mais velhos. A consistência relativamente solta da túnica adventícia é reforçada por feixes longitudinais de fibras de colagénio que permitem variações constantes no diâmetro vascular.

Figura 1. Imagem histológica de uma artéria coronária de um adulto. Observam-se as 3 túnicas similares às artérias musculares. A camada subendotelial é consideravelmente mais espessa devido à idade em relação a uma artéria muscular. Visualiza-se a membrana elástica interna (IEM) na fronteira com a túnica média (TM), que também está espessada em relação às artérias musculares. O tecido conjuntivo da túnica adventícia (TA) demonstra um arranjo livre e contém perifericamente feixes de fibras de colagénio. Existe ainda uma separação artificial entre o músculo cardíaco (CM) e a TA. Fonte: Ross, M. H., Pawlina, W., Histology: A text and atlas


A doença cardíaca isquémica ou cardiomiopatia isquémica, define-se como um desequilíbrio entre o fornecimento e necessidade de sangue oxigenado para o coração. A sua causa mais frequente é aterosclerose. O risco de aterosclerose agrava com idade, história familiar, hipertensão, tabagismo, hipercolesterolemia e diabetes. Na aterosclerose, o lúmen da artéria coronária estreita progressivamente devido à acumulação de lípidos, matriz extracelular e células, levando à formação de placas ateromatosas (ateroma). As placas são formadas por deposição lipídica intracelular e extracelular, proliferação de tecido muscular liso e aumento de proteoglicanos e colagénio na túnica íntima da parede vascular. O fluxo sanguíneo torna-se crítico quando a redução do calibre do lúmen é igual ou superior a 90%. A libertação de um trombo (coágulo) da superfície da placa ateromatosa precipita um evento isquémico agudo. Os eventos isquémicos são caracterizados por dor anginosa associada a perda de fluxo sanguíneo oxigenado para a região habitualmente irrigada pela coronária afectada. A trombose da artéria coronária normalmente precede e precipita o enfarte do miocárdio, que se se traduz por uma insuficiência súbita no fornecimento sanguíneo resultando numa área de morte de tecido muscular. O trombo mural pode ocorrer e está habitualmente associado a uma disfunção ou ruptura do endotélio sobreposto à placa ateromatosa. Se a situação for revertida, com o tempo, o tecido miocárdico recupera, formando uma cicatriz substituindo o tecido afectado, perdendo contudo a sua função contráctil nessa área. Múltiplos ou extensos enfartes podem provocar um decréscimo grave de função cardíaca levando à morte.



Figura 2. Exemplos de imagens histológicas de diferentes tipos de lesões (coloração Hematoxilina Eosina): (A) túnica íntima normal; (B) Formação de células espumosas, foam cells; (C) lesão intermédia; (D) placa de núcleo lipídico; (E) placa fibrosa; (F) ruptura da placa com hemorragia e trombo luminal. IEL indica a membrana elástica interna.
Fonte: http://stroke.ahajournals.org/content/38/10/2698/F2.expansion.html


Os mais recentes avanços tecnológicos em diferentes técnicas de imagem médica permitiram que a imagiologia cardíaca evoluísse significativamente e que novas possibilidades de diagnóstico emergissem. Como exemplos, temos a tomografia computorizada (TC) com possibilidade de excluir morfologicamente doença coronária com um método minimamente invasivo ou a ressonância magnética (RM) com a elevada caracterização tecidular e resolução temporal permitindo o estudo funcional na detecção e quantificação de isquemia e viabilidade miocárdica. Paralelamente ao diagnóstico, novas técnicas associadas à intervenção percutânea cardíaca surgiram como um auxiliar na caracterização local de lesões coronárias a serem intervencionadas, de que são exemplo a ecografia intravascular (IVUS-Intravascular Ultrasound) ou a tomografia de coerência óptica (OCT-Optical Coherence Tomography). 

Estas diferentes técnicas diferenciam-se no processo físico de obtenção de informação, no entanto têm em comum a crescente utilização como métodos de caracterização axial das artérias coronárias, providenciando informação que se relaciona com os típicos cortes histológicos. Uma vez que a informação em corte histológico das diferentes técnicas de imagem é obtida de forma indirecta pelo processamento de dados digitais, é comum a referência ao resultado final destes meios de diagnóstico como histologia virtual. 

A TC cardíaca utiliza como fonte de informação os diferentes comportamentos dos diferentes tecidos quando expostos a radiação ionizante, gerando uma imagem com diferentes tons de cinzento (Unidades de Hounsfield). Através de uma simultânea injecção de produto de contraste iodado por via endovenosa permite realizar angiografias coronárias, possibilitando a diferenciação dos vasos sanguíneos e o estudo do tipo de tecido envolvente.



Figura 3. Imagens de reconstrução planar curva de angiografia coronária por TC (a e b) Em (a) a seta indica uma lesão não calcificada. A imagem (c) indica um corte axial à lesão observando-se a relação entre o lúmen e a placa não calcificada indicada pela seta. A imagem (d) indica o resultado da análise do corte axial, atribuindo cores a diferentes intervalos de tons de cinzento correspondentes a atenuações de diferentes tecidos.
Fonte: http://bjr.birjournals.org/content/82/982/805/F3.expansion.html


A RM cardíaca assume-se como a técnica de imagem com maior capacidade de diferenciação tecidular sendo acompanhada ultimamente de uma crescente maior resolução espacial e temporal. A RM permite o estudo do diferente comportamento tecidular a diferentes sequências de aquisição que correspondem a respostas a diferentes pulsos de radiofrequência sob a acção de um campo magnético. Esta técnica apresenta promissores resultados em histologia sobretudo a nível experimental.

Figura 4. A figura apresenta uma série de imagens de RM obtidas ex-vivo em coelhos e a comparação com os cortes histológicos, conseguindo-se correlacionar com os diferentes componentes da placa observados em RM, placa calcificada (escuro), núcleo lipídico (cinzento) e núcleo fibroso (claro).
Fonte: http://www.thrombosisjournal.com/content/2/1/5/figure/F4


A técnica de IVUS é utilizada na prática clínica em apoio directo à intervenção de cateterismo cardíaco. É realizada através da navegação de um cateter dentro da artéria coronária com a capacidade de emitir e receber ultra-sons. Obtém-se uma imagem de varrimento e de cortes transversais ao vaso devido ao diferente comportamento tecidular aos ultra-sons. É um método que permite uma boa caracterização da placa aterosclerótica e é utilizado em muitos casos para avaliar a resposta de revascularização na colocação de próteses vasculares coronárias (stents). 

Figura 5. Séries comparativas de imagens axiais de uma artéria coronária por IVUS, histologia virtual e clássica. A série intermédia de histologia virtual resulta de um processamento digital da informação adquirida por IVUS (série inferior), evidenciando a distinção de tecidos. A área calcificada, fibrosa, fibrolipidica e lipídica correspondem respectivamente às cores branca, verde, amarelo e vermelho.
Fonte: http://www.revespcardiol.org/sites/default/files/elsevier/images/255/255v58n10/grande/255v58n10-13080167fig04.jpg


A OCT é uma das técnicas imagiológicas mais recentes e promissoras. Em cardiologia, é utilizada em laboratório de hemodinâmica e tal como o IVUS dá apoio à intervenção permitindo também uma avaliação imediata de resultados, tendo um papel importante no follow-up de lesões revascularizadas. O princípio físico baseia-se na emissão e reflexão de um feixe luminoso infravermelho através de um cateter que navega dentro da artéria em estudo. A imagem obtida é de elevada resolução e permite uma elevada distinção de tecidos pelos diferentes comportamentos em relação ao feixe luminoso emitido e reflectido.

Figura 6. Imagens comparativas de OCT (C,D) com histologia (A,B) no estudo da formação de neointima na reendotelização por colocação de stent. Fonte: Suzuki, Y. et al. J Am Coll Cardiol Intv 2008;1:168-173


As diferentes técnicas imagiológicas têm desenvolvido novas aplicações decorrentes das constantes evoluções tecnológicas. Embora a maior parte apresente apenas um valor potencial e na prática não terem ainda um papel bem definido, poderemos contar no futuro com técnicas de imagem cada vez mais robustas e fidedignas. A crescente capacidade de técnicas como TC e RM de poderem dar mais informação num só exame de uma forma não invasiva ou o grau de especialização das técnicas de IVUS e OCT no apoio à intervenção e follow-up de tratamentos, são alguns dos exemplos das novas possibilidades de caracterização tecidular. A possibilidade de obter histologia virtual só será contudo possível com a correlação e validação com o conhecimento da histologia clássica de modo a melhor entender e acompanhar o processo aterosclerótico e assim optar por mais correctas decisões terapêuticas.


Bibliografia: 

  • Ross, M. H., Pawlina, W., Histology: A text and atlas; 6a edição, Lippincott Williams and Wilkins, 2011. 
  • Relatório da Organização mundial de Saúde: Noncommunicable diseases country profiles 2011, WHO global report, 2011. (disponível no endereço: http://whqlibdoc.who.int/publications/2011/9789241502283_eng.pdf
  • Dalager, S. et al. Artery-Related Differences in Atherosclerosis Expression Implications for Atherogenesis and Dynamics in Intima-Media Thickness, Stroke 2007 
  • Brodoefel, H. et al. Accuracy of dual-source CT in the characterization of non-calcified plaque: use of a colour-coded analysis compared with virtual histology intravascular ultrasound. British Journal of Radiology, 2009. 
  • Sharma, R., Singh, R., MRI of coronary artery atherosclerosis in rabbits: Histopathology-MRI correlation and atheroma characterization, Thrombosis Journal, 2004. 
  • Rodriguez-Granillo, G.A. et al. New insights towards cateter-based identification of vulnerable plaque. Revista Española de Cardiologia, 2005. 
  • Suzuki, Y. et al. In vivo comparison between Optical Coherence Tomography and Intravascular Ultrasound for detecting small degrees of in-stent neointima after stent implantation. Journal American College Cardiology Intervention, 2008.

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